Viu os mouros chegarem e instalarem-se por toda a Península Ibérica. Ouviu ao longe D. Afonso Henriques conquistar territórios e fundar um país, do Minho até Beja. Testemunhou, cerca de cem anos mais tarde, a derradeira expulsão dos mourosdo Algarve, o último pedaço a tornar-se Portugal. Aquela que é considerada a árvore mais antiga do país, uma oliveira, tem dois mil anos e foi plantada no tempo dos romanos, tinham eles chegado à Península Ibérica uns 200 anos antes. Tivesse Jesus Cristo andado no Algarve e podia tê-la conhecido.
O tronco cresceu, cresceu, cresceu, e retorceu-se e ficou oco. Uma fenda entre duas pernadas é um convite a admirá-la por dentro. Uma mesa e banco, feitos de madeira (será da própria?), aguardam as risadas das crianças e a curiosidade dos adultos, se estiverem dispostos a um pouco de contorcionismo.
No seu interior oco, a brisa não é já tão fria, o sol atravessa orifícios ovais e traça raios luminosos no ar, como nos vitrais de uma catedral. Ao olhar para cima, destaca-se um tronco, a parte central da oliveira, já morto. As pernadas balançam empurradas pelo vento e os pássaros entretêm-se a chilrear escondidos entre a folhagem viçosa.
Os barulhos da civilização, carros que chegam ao aldeamento turístico onde se encontra no Algarve e até aviões, parecem mais distantes. O interior da árvoreé como um casulo.
Em dois milénios, deve ter escutado muitas conversas, passado por provações e dado de comer a muita gente com as suas azeitonas e o azeite que delas produziu. Muita gente deve ter alumiado também. A que doenças e pragas sobreviveu? A quem deu sombra e encosto? Por sorte, não houve incêndios que a destruíssem, nem ninguém que a cortasse ou podasse a ponto de a matar.
Faz agora sombra a algumas moradias, caiadas de branco, portadas das janelas abertas, mas sem ninguém que responda ao toque da campainha, no aldeamento turístico de Pedras d"el Rei, na freguesia de Santa Luzia, a poucos quilómetros de Tavira. A praia do Barril, na zona lagunar da ria Formosa, fica em frente.
Por companhia, tem outra oliveira e uma alfarrobeira. Só ela, no entanto, tem direito a uma placa informativa: em duas folhas de papel desgastadas pelo tempo, dispostas lado a lado, lê-se que a oliveira bimilenar, "o ser vivo mais antigo de Portugal", foi classificada como uma árvore de interesse público em 1984.
Uma folha enigmática
Entretanto, a mais de 300 quilómetros de distância, em Lisboa: no edifício da Autoridade Florestal Nacional (AFN), do Ministério da Agricultura, o elevador vai até ao quinto andar. Para descobrir mais coisas sobre a oliveira, há que subir a pé as escadas até ao sexto andar, percorrer um corredor estreito, até que, no fim, surge António Campos Andrada, o responsável pelas árvores classificadas como de interesse público.
No seu gabinete, uma secretária e um armário, sem lugar para muito mais. Escancarado o armário, saltam à vista caixas arquivadoras. Estão identificadas por siglas e, dentro delas, preservam-se as pastas das árvores e arvoredos classificados em Portugal desde 1938, o ano da lei de protecção de árvores mais antiga da Europa. Pastas que em tempos foram árvores.
Da pasta da oliveira bimilenar, Campos Andrada retira artigos de jornais ("tem sido alvo de muitas notícias e eu vou tirando fotocópias"), uma planta com a sua localização, fotografias antigas e documentação variada.
Encontra-se a carta que o empreendimento turístico escreveu em 1983 a pedir a classificação da oliveira pelo seu porte e antiguidade. Ou o relatório da última vistoria técnica, em Junho de 2006. "Como temos árvores classificadas desde 1938, temos tentado medi-las de dez em dez anos, para podermos acompanhar o crescimento, tentar prevenir a decrepitude e actuar se houver alguma doença ou estiver ameaçada", diz Campos Andrada.
No último relatório, a esferográfica azul, o engenheiro florestal Rui Queirós anotava: "Magnífico exemplar de uma oliveira, bimilenar, de fuste [o tronco até aos primeiros ramos] importante e grande beleza, completamente oco, com uma porta de 0,40 metros de largura, formando interiormente uma sala circular com 1,30 metros de diâmetro." Um pouco mais à frente: "O fuste é de grande beleza por estar completamente furado com cavidades circulares de diferentes diâmetros e com o lenho completamente retorcido. Dele levantam-se ainda quatro vigorosas pernadas que ramificam em braças e ramos, produzindo uma copa densa e frondosa."
O estado vegetativo e sanitário é bom, relatou ainda Rui Queirós, para concluir: "A oliveira tem grande beleza e valor paisagístico, constituindo uma memória da antiga actividade agrícola e exploração do pomar de sequeiro, já desde o período da romanização."
O mais enigmático é o que alguém começou por escrever numa folha A4, a lápis: "A oliveira de Pedras d"el Rei em 1983 tinha 2016 anos por determinação do método de carbono 14 no laboratório..." Parou aqui, e nada mais disse.
Há outros documentos sobre a datação? "Não há mais nenhum. Isto foi-me passado sempre com a indicação de que esta foi a única árvore avaliada pelo método do carbono 14", responde Campos Andrada.
"Como a idade não é o único factor para determinar a classificação de uma árvore - pode ser o porte, a raridade... -, não calculámos a idade pelo carbono 14", acrescenta o engenheiro técnico agrário. Além disso, é um método caro e, como é preciso fazer um pequeno orifício até ao cerne da árvore, fica uma porta de entrada para fungos e insectos. "A datação é feita mais por tradição oral, por contactos com as pessoas mais antigas de uma povoação, e por documentos históricos."
Portanto, esta oliveira pode até nem ser a decana - simplesmente, o método usado para datá-la é mais preciso. E na base de dados das árvores de interesse público, ou monumentais, ou notáveis, como se lhes pode chamar, a AFN incluiu outros exemplares que são contemporâneos de Jesus Cristo. São também oliveiras: três em São Lourenço (Setúbal), duas em Salvador (Serpa).
É o guardião das árvores de interesse público? "Sou, sou", e ri-se. "Sou, mas há muitas coisas chatas também. Estas árvores têm uma área de protecção de 50 metros e tenho dificuldade em gerir os processos. Não é proibido construir dentro desses 50 metros, tem é de haver sempre um parecer que diga se a construçãovai afectar a árvore. Temos tido dificuldade em elaborar pareceres sobre espécies que não são do nosso clima e foram trazidas para cá. Não há estudos."
Nem Campos Andrada, que visitou quase todas as árvores classificadas, nem os técnicos das direcções regionais de Floresta andam pelo país à procura de mais exemplares para acrescentar à lista (que vai nas 416 árvores isoladas e 73 arvoredos, em Portugal continental). Mas são os seus proprietários, como aconteceu com a oliveira de Pedras d"el Rei, ou qualquer cidadão que se depare com um exemplar digno de protecção que propõem a classificação à AFN. Além da idade, do porte e da raridade, a forma bizarra e motivos histórico-culturais podem justificar a classificação.
Em floração
De volta ao Algarve: Miguel Rodrigues, professor de Ciências Naturais na Escola Engenheiro Duarte Pacheco, em Loulé, já visitou a oliveira de Tavira algumas vezes. Até já a mediu.
Ele e um amigo, Pedro Santos, licenciaram-se em Biologia e, já como professores no Algarve, começaram à procura de árvores monumentais em 2006. O resultado foi a criação da Associação Árvores de Portugal em 2009. Conseguiram já que a AFN classificasse algumas, e agora o projecto é avançar para todo o país. "Há pessoas que nos dizem: "Ah, lá vêm os maluquinhos das árvores.""
De roda da oliveira de Tavira, Miguel Rodrigues aponta as suas particularidades. "Tive de ir lá para o fundo para a pôr toda na fotografia." Não é para menos: na base do tronco, o perímetro atinge 11 metros e, à altura do peito, é de 7,74 metros. "Quando estamos debaixo de uma árvore monumental, temos a sensação de uma presença poderosa." Em altura, passa os dez metros.
Na placa ao lado da oliveira está escrito que são precisos cinco homens para a abraçar. Serão mesmo? Funcionários do aldeamento abraçam-na agora, para confirmar: afinal, só com seis pessoas se completa o abraço. "Tenho familiares habituados a trabalhar com oliveiras e, quando vieram cá, ficaram impressionados. Nunca tinham visto nada assim", conta Sérgio Santos, o chefe da recepção, um dos que abraçam a oliveira. "O que mais admiro nesta árvore é a maneira como envelheceu: ter ficado oca no meio. O tronco principal abriu-se e é como se tivesse duas pernas."
Por estar oca, os anéis mais velhos perderam-se, pelo que não poderá datar-se através do seu crescimento, nem extrair deles dados sobre o clima ou a poluição de outrora. Mas o que pode ter de especial para a ciência uma árvore antiga?
Rui Malhó, biólogo da Faculdade de Ciências de Lisboa, diz que o maior interesse está na sua genética: à medida que se seleccionaram as oliveiras, para produzir mais, por exemplo, elas foram perdendo diversidade genética. Em caso de uma doença ou condições ambientais difíceis, as oliveiras, ou outras árvores antigas, são um reservatório genético a que pode recorrer-se: "Podem ser uma base genética importante para complementar variedades que já perderam a capacidade que os seus antepassados tiveram de resistência a doenças. Pode-se agarrar nessas plantas mais antigas e ver os genes que expressam [entram em acção] quando há uma infecção."
Apesar de ser um verdadeiro arquivo genético, nem por isso esta oliveira tem recebido muita atenção dos cientistas - que preferem plantas mais fáceis e rápidas de estudar. O certo é que a decana das árvores portuguesas, a três passos da piscina, dos campos de ténis ou de lojas do aldeamento, ainda dá azeitonas. E a prova, discreta, está nas suas pequenas flores.
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